terça-feira, 19 de agosto de 2014

O PERDÃO


O telefone tocou... - Alô? - Alô. Luciano? - Sim. Quem é? - Não conhece mais a minha voz? - Não estou conseguindo identificar. Quem está falando? - Nossa, como foi fácil pra você me esquecer... Acho que não tivemos muito significado... - Nathasha?! - Oi... - Que surpresa você me ligar! Pra quem disse que queria me esquecer para sempre... - Vai ofender? Eu desligo! - Fique à vontade, querida. Quem ligou foi você mesmo... - Não, espere, não vou desligar. Desculpe. É que estou aborrecida, só isso. - Tá. E o que você quer? - Nada. Eu só queria ouvir sua voz. - Só? Então já ouviu. Mais alguma coisa? - Espere, pare de ser grosso. Não, desculpe, não desligue. É que eu estou me sentindo muito sozinha. - Foi você quem quis assim, querida. Sorva do seu próprio veneno. - Realmente você não muda. Só sabe acusar... - Bom, vou desligar. Tchau... - NÃO, PELO AMOR DE DEUS, não desligue, espere, preciso te dizer algo... - Fala logo, Natasha. Tenho que trabalhar. - Eu estava errada. Me perdoe. - ERRADA? Você estava errada? Tem certeza disso? Será que não é um pouco tarde pra dizer isso? - Mas agora eu reconheço...Por favor, amor, me perdoe! - Agora? Depois que você acabou comigo, querida? Até hoje eu pago o mico do papelão que você me fez passar... Convites distribuídos, acampamento alugado, comida encomendada, viagem paga, meu casamento com você, tudo perdido... (Luciano suspira). Sofri, sofri mesmo. Queria matar você! Droga, por que eu tive que amar você? Mas tudo bem. Já faz dois anos... Ah, meu Deus, dois anos... - Luciano, pelo amor de Deus, me perdoe! - Pra que você quer o meu perdão? Você nem ligou pra dizer que já estava com outro cara. Pra que perdão? Vai viajar com ele, vai viver com ele, meu bem... Só me deixe em paz, por favor! Luciano chora baixinho. Sem se dar conta, Luciano percebe uma pessoa na porta do escritório. Era ela. Natasha estava olhando pra ele. Ela falava do celular. Luciano fica perplexo, alegre e triste - ela está linda, belíssima, muito elegante. Mas seu rosto está abatido, cansado, doente. Na mão tinha uma sacola. Aproximou-se da mesa de Luciano, e, com olhos lacrimejantes, desligou o celular, olhou para ele e disse: - Oi, amor. - Oi, Natasha. Pare de me chamar de amor. Você tá um caco, filha! Olhos baixos, Natasha começa a tirar da sacola algumas coisas: uma caixa do correio com um CD do Demmis Roussos, que Luciano havia enviado de presente no aniversário, uma boneca de porcelana numa casinha de papel, um celular pré-pago, alguns livros devocionais, uma bíblia de Genebra e um pacote de fotografias. Luciano a observava, perplexo, triste, e via as lágrimas de Natasha molharem a fórmica da sua escrivaninha. Cada objeto tirado era uma facada no coração sofrido de Luciano. Algumas coisas lhe custaram caro, ele fizera grande esforço para pagá-las. Mas, pensava ele, se era pra ela, valeria à pena o esforço. Quando tudo terminara, ele se arrependera de tanto gasto desperdiçado... - Pensei que você havia jogado fora as coisas que lhe dei, Natasha... - Eu nunca me esqueci de você, Luciano. Eu errei. Errei muito, me perdoe... Luciano, jovem advogado, lutador com as interpéries da vida, sabia que Natasha poderia estar mentindo, como tantas outras vezes, quando namoravam e mesmo quando eram noivos. Mas havia um quê de diferente no olhar vermelho de Natasha. - Por que você veio hoje aqui, Natasha? Deu a louca? O que te traz aqui? - Natasha suspirou, chorou, recompôs-se e disse: - Estou com câncer, Luciano... - CÂNCER? Luciano petrificou-se. - Sim, amor, eu vim me despedir. Saí do hospital à força, pra falar com você e pra morrer em casa... Luciano não esperava por essa. Veio-lhe à memória uma de suas discussões, onde Natasha, na hora do nervoso, dissera: "E daí, Luciano? Que se dane a igreja, que se dane o pastor, que se dane você, e se Deus achar que estou errada, que me castigue..." Nossa, era como se a cena passasse de novo na mente de Luciano. - Como foi, Natasha? - Depois que eu deixei você, amor, fui caindo no abismo, afastei-me do Senhor, fui morar com o André, abandonei a Cristo. Eu estava cega. Mas Deus me amava, Luciano. Se eu não fosse dEle, estaria numa boa agora, bem com o André, bem comigo e pronta pra ir pro Inferno. Mas, por amor, Deus veio corrigir-me. Ele repreende e castiga a quem ama. Ele me ama, Luciano! Estou doente. Mas estou bem, porque estou podendo vir até você pra pedir perdão! Nunca fui feliz, nunca tive paz, saí de casa com 3 meses de vida a dois. O André me batia, me traía, eu fugi. - E ele não foi buscar você de volta?! - O André foi assassinado, Luciano. Tráfico de drogas. Luciano estava perplexo. - Luciano, estou voltando pro Senhor, estou me preparando pra partir. Mas tenho que receber o seu perdão, amor! Sei que nunca irei compensar o que lhe fiz, mas... por favor... ME PERDOA, AMOR! Luciano olhou para aquele resto de mulher - outrora tão orgulhosa, ostentando tanta beleza e auto-suficiência, confiando tanto em seu corpo e em sua fulgurante beleza, e agora, bonita ainda, mas notadamente pálida, enferma, cheia de hematomas nos braços, pescoço e pernas, e triste, profundamente triste, a implorar-lhe perdão para morrer em paz! Cena patética! Ali estava quem Luciano mais amara na vida, quem mais o fizera sofrer, a depender de uma palavra apenas, para morrer em paz! "Hora da vingança", veio-lhe à mente. Claro, agora seria a hora da revanche! Mas Luciano era um moço crente, de bom coração, e seria incapaz de reter a bênção para aquela a quem tanto amara e que, infelizmente, ainda tanto amava e tanto o fazia sofrer... Quer que eu perdoe você, Natasha? SIM, PELO AMOR DE DEUS, Luciano! Nunca mais tomei a Ceia do Senhor, nunca mais louvei ao Senhor com alegria, nunca mais fui membro de igreja, não agüento mais! Aceito as conseqüências, mas, por favor, diga que me perdoa! Enxugando as lágrimas, refazendo-se, Luciano olhou-a no fundo dos olhos, tomou as suas duas mãos, que estavam frias como as de um defunto, e lhe disse, num terno sorriso misericordioso: Querida: desde que você foi embora eu já havia lhe perdoado. Mas, se você quer escutar e sentir paz, ouça-me: EU PERDÔO VOCÊ POR TUDO QUE ME FEZ. VOCÊ ESTÁ LIVRE EM NOME DE JESUS! Natasha tremeu. Gritou "aleluia", sorriu, chorou, e caiu desmaiada. Logo o assistente de Luciano veio ajudá-lo, e, colocando-a no carro, levaram-na para o hospital. Luciano tinha o telefone de toda a família ainda, ligou e avisou. Em uma hora todos estavam ali na recepção, tristes, aflitos, alguns desesperados. Chegou o pastor. A família implorou-lhe que fosse até a UTI orar com ela. O pastor, que conhecia o Luciano, olhou bem pra ele, pensou, fechou os olhos em oração, e, a seguir, falou: Quem tem que entrar é o Luciano. Vá lá, Luciano. Eu conheço o diretor da UTI, pedirei autorização. EU, PASTOR? Sim, filho. Ela é o seu amor. FOI, PASTOR... Não, filho. Deus o uniu a ela novamente, ainda que seja na despedida. Luciano não sabia o que fazer. A família, desconsolada, chorava, mas a mãe, certa do que tinha que ser feito, empurrou o Luciano até a porta, dizendo: "Vai, filho, corre, antes que seja tarde!" Ah, aquele corredor que dava para a UTI parecia não ter fim! Cada passo dado era uma lembrança: o primeiro beijo, a primeira maçã-do-amor, o primeiro jantar, o primeiro por-do-sol juntos; o dia em que viajaram num encontro missionário, o dia em que foram juntos à praia e que ele deu de presente a primeira rosa! O jantar de noivado, os telefonemas, tudo. Não sobraram recordações da tragédia, da traição, do desprezo. Na verdade quem ama guarda as más experiências numa sacola furada. E Luciano fez assim. Vestido com o jaleco, a máscara e o sapato de pano, Luciano entrou. Vários boxes onde pessoas definhavam. Lá estava Natasha, no número 6. Estava no respirador artificial, cuja sanfona funciona como um pulmão e faz um barulho horripilante. Estava linda, mas totalmente ligada a aparelhos, notadamente cansada, em coma, morrendo. Luciano sentiu sua dor. Chorou. Tremeu. Segurou forte a mão de sua amada. Pensou em Cristo, que dera a vida pela noiva, pensou em Oséias, que aceitou a esposa adúltera novamente, pensou em Deus, que tantas e tantas vezes tratou a Jerusalém com compaixão. Quem era ele para não perdoar? Quem era ele para não acolher? Então orou. "Senhor, o que posso dizer? Minha garota está morrendo! Ex-garota, claro. Mas mesmo assim está doendo, Pai! E eu sou impotente diante de tudo isso! Essas máquinas, esse cheiro de éter e de carnes inflamadas, esse barulho infernal, meu Pai, o que posso dizer? Que deixe a minha garota morrer em paz? Sim, Senhor, leve-a para a tua glória! Eu a amo! Mas sei que tu a amas mais do que eu! Abençoa a Natasha. Em nome de Jes... Subitamente Luciano pensou em completar a oração com o seguinte pedido: "Mas, Senhor, se ainda houver um espaço para ela viver para ti, recuperar parte do tempo perdido, se na tua infinita misericórdia não for demais, por favor, Senhor, cura a tua serva. Ela já sofreu bastante, ela aprendeu, Senhor. Até eu, que fui o mais ofendido, já a perdoei! Por favor, Senhor, se der, devolve-lhe a vida! Mesmo que não seja pra viver comigo. E agora sim, em nome de Jesus. Amém". Por favor, me avisem - disse Luciano aos familiares - , me avisem quando tudo terminar. Quero estar presente. E foi embora. Tirou a tarde para viajar, seu hobby preferido: foi pra uma cidadezinha próxima, ver o pôr-do-sol.

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